Pacote “anticrime”, “reforma” da Previdência e a carne mais barata, por Talíria Petrone

Originalmente publicado em Carta Capital.

Imagina o futuro da Dona Francisca. Mulher, negra, com seus 65 anos de idade, dos quais 50 anos trabalhando como empregada doméstica.  Se a “reforma” da Previdência passar, a moradora da favela da Nova Holanda, na Maré, terá que (sobre) viver com os R$ 400,00 pagos pelo Benefício de Prestação Continuada (BPC).

Assim como várias outras idosas da sua idade, Dona Francisca não conseguiu se aposentar, já que a maior parte dos seus longos anos de trabalho foi na informalidade, sem carteira assinada. Com as mais de 5 décadas de sofrimento e de muito trabalho pouco remunerado marcadas em seu rosto, ela conta com a ajuda de dois netos, que vivem também na informalidade, fazendo bicos no centro da cidade.

Um desses netos é fruto de um relacionamento na adolescência de seu filho Pedro, assassinado há 12 anos pela polícia do Estado do Rio de Janeiro. O guarda-chuva que Pedro carregava no dia cinza e chuvoso da sua execução foi confundido com uma arma. Pedro, que hoje teria quase 40 anos, virou mais um nas trágicas estatísticas – 30 mil jovens são assassinados por ano no Brasil. Homem negro, filho de uma trabalhadora doméstica, assassinado pelo Estado.

As histórias de Dona Francisca e de seu filho Pedro não são exceção. Representam “a carne mais barata do mercado” e a mais impactada pelas últimas medidas de austeridade. São 37 milhões de trabalhadores na informalidade e 12,7 milhões de desempregados. 46% dos trabalhadores negros no Brasil estão fora do mercado formal.  50% das mulheres que se aposentaram por idade no ano passado não contribuíram nem por 16 anos. Nenhum deles se aposentará caso a reforma proposta seja aprovada pelo Congresso Nacional.

Famílias como a de Dona Francisca estão entre a massa de trabalhadores e trabalhadoras que vivem do Regime Geral e do BPC. Deles vêm 83% vêm dos recursos para corrigir o suposto déficit da Previdência. Digo suposto, porque os gastos com a Previdência, assim como com saúde e educação, deveriam ser encarados como um investimento social.

Se a ideia é “combater privilégios” e corrigir desigualdades, por que não mudarmos nossa política de conivência com as sonegações fiscais? Por que não rever renúncias fiscais que beneficiam mineradoras como a Vale? Por que não uma reforma para taxar lucros e dividendos e patrimônios?

E, mais, se o problema é justamente uma diferença entre os que hoje trabalham e contribuem para a Previdência e os que precisam viver desses benefícios, por que não investir em políticas de inserção no mercado de trabalho, aumentando o número de contribuintes?

A resposta é simples: porque essa proposta não é para nós. Pelo contrário. O nosso corpo, o de Dona Francisca, de Pedro e de tantos outros serão os principais alvos dessa medida, assim como de outras em debate no Palácio do Planalto e no Congresso Nacional, como o pacote anti-crime do ministro Sérgio Moro.

A PEC 06/2019 encontra-se em tramitação hoje na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJC) da Câmara dos Deputados, da qual sou membro titular representando o meu partido, o PSOL. Como mulher, negra e professora da rede pública de ensino, vejo-a como um dos maiores ataques aos nossos direitos previdenciários em debate até hoje no país.

O pacote anti-crime está tramitando paralelamente na Câmara e no Senado.  O mesmo corpo que tem negado o seu direito a viver com dignidade na velhice poderá ser também vítima da bala de fuzil do Estado, sem que este seja responsabilizado. O pacote institui uma verdadeira “licença para matar”.

Vivemos um genocídio de jovens negros no Brasil. Todos os dias são assassinadas 153 pessoas. Em 2017, foram 5.144 pessoas assassinadas por policiais, 20,05% a mais que em 2016, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública. Como Pedro. Filhos de mulheres como Dona Francisca. Quando que, em algum lugar do mundo, o Estado, “por engano”, dispararia 80 tiros contra um carro, matando um trabalhador que passeava no domingo com sua família?

Temos a terceira maior população carcerária do mundo. E esse genocídio tem sido a causa e não a solução do problema da violência, que para nós é mais amplo. É  preciso regulamentar as drogas, controlar armas e munições, melhorar condições de trabalho para os agentes da segurança pública.

Enfrentarei, aqui na Câmara, estes debates com toda disposição para impedir mais retrocessos ao nosso povo, que, como Dona Francisca, seus netos e seu filho Pedro, é vítima da política genocida desse Estado. O mesmo Estado que mata com bala de fuzil, mas mata também acabando com o direito de se aposentar, desmontando a saúde e a educação públicas ao congelar investimentos nessas áreas. Tá na hora da carne negra deixar de ser a mais barata do mercado. Resistimos!


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