Maio que antecede Junho – por Helder Oliveira

Maio de 2019 já entrou para história do país. Milhões de brasileiros ocuparam as ruas em defesa da educação pública e contra os cortes de verba para o setor. O eixo da mobilização é a defesa da educação, das universidades, dos IF’s, da educação básica, da ciência, da livre associação intelectual, do pensamento crítico. Também é verdade que algumas pautas não deixaram de aparecer, de forma minoritária, gerando, inclusive, uma reação organizada do governo tentando imputar ao histórico 15 de maio o caráter de partidarização institucional, no qual os manifestantes seriam apenas “idiotas úteis”. Não deu certo. Uma fulminante mobilização, que combinou articulação de estudantes e categorias ligadas a educação, ocupou as ruas do país e movimentou a cena política brasileira. A comparação com o histórico junho de 2013 se impõe.

Primeiro, da origem. Junho de 2013 surgiu a partir da indignação coletiva com o serviço de transporte público. Em Porto Alegre, no episódio de mais um aumento do valor da tarifa do transporte, explodiu uma grande mobilização popular pautando a redução imediata da tarifa do transporte. Dois meses antes, em abril de 2013, os então vereadores de Porto Alegre Fernanda Melchionna e Pedro Ruas, ambos do PSOL, já tinham conseguido suspender o aumento da passagem na justiça, evidenciando o nítido abuso econômico da tarifa. Em nova tentativa de acréscimo no valor da passagem, a cidade explodiu e iniciou um processo crônico de mobilizações que se nacionalizou, expandiu, confundiu e virou o até então tabuleiro político brasileiro que contava basicamente com duas ou três peças: PT, PSDB e o PMDB como base de qualquer um. A Presidenta da república era Dilma Rousseff, do PT, partido que contava com alto grau de apoio em setores organizados da classe trabalhadora e movimentos sociais, a exemplo de CUT, MST, UNE. Assim, os setores que ocupavam as ruas em junho de 2013 tinham, de forma geral, um perfil juvenil e sem experiência com grandes mobilizações de rua, para além de não contar com qualquer entidade que pudesse reivindicar a liderança do movimento (o MPL – Movimento Passe Livre – talvez tenha sido o movimento que mais alcançou protagonismo e identidade com as mobilizações, lhe conferindo, portanto, uma espécie de direção inicial do movimento). Sendo assim, o resultado foi confusão e generalização de pautas. No início, alguns setores organizados, que entenderam o caráter multitudinário de junho, e a necessidade de disputar os rumos do movimento, buscaram objetivar uma pauta em “Fora Feliciano” (até então o deputado federal mais homofóbico) e por “Mais Direitos”. Era ano que antecedia a copa do mundo e as palavras de ordem “saúde e educação padrão FIFA” e “contra a corrupção” mais ou menos balizaram os atos em sua fase inicial, precedida pela pauta da tarifa do transporte, que seguiu sendo importante. Tanto é que, um dia após o pico de mobilização de junho de 2013, a Presidenta Dilma foi em rede nacional com 5 medidas como respostas as manifestações: saúde, educação, transporte público, reforma política e responsabilidade fiscal. Dilma, de antemão, longe das paixões cegas, entendeu sociologicamente as mobilizações de 2013, declarando, nesse mesmo dia: “O povo está agora nas ruas, dizendo que deseja que as mudanças continuem, que elas se ampliem, que elas ocorram ainda mais rápido. Ele está nos dizendo que quer mais cidadania, quer uma cidadania plena. As ruas estão nos dizendo que o país quer serviços públicos de qualidade, quer mecanismos mais eficientes de combate à corrupção que assegurem o bom uso do dinheiro público, quer uma representação política permeável à sociedade onde, como já disse antes, o cidadão e não o poder econômico esteja em primeiro lugar.” Dilma Rousseff, 21 de junho de 2013. Voltaremos a nesse tema em seguida.

A origem de maio de 2019 é diferente, mas como uma consequência histórica de 2013. Alijada do poder a partir de um golpe parlamentar em 2016, que contou com articulação, inclusive, do próprio vice Presidente da República, Michel Temer, Dilma, e o PT, saíram derrotados do governo, após mobilizações de massa orquestrada pela direita em 2015, e do processo de Impeachment no congresso Nacional que findou em agosto de 2016. As eleições municipais de 2016 e as eleições gerais de 2018 ratificaram a popularização antipetista. Nesse processo, ainda como ferida aberta em 2013, o poder e as instituições brasileiras estavam e seguem estando completamente em crise, sem credibilidade popular e incapaz de enfrentar os reais e graves problemas sociais como consequência da severa crise econômica que vive o país, iniciada em 2008. Enquanto os de cima seguem acumulando riquezas, a elite política ataca os de baixo pra tentar amenizar minimamente a severa crise econômica, levando o povo brasileiro à pauperização: desemprego, miséria, fome, aumento da população de rua, aumento da taxa de suicídio, queda da capacidade e qualidade de serviços básicos como saúde, educação e moradia, milhares de servidores públicos com salários parcelados… enfim o caos político e institucional. Neste cenário, a bipolaridade política que existia antes de 2013, PT e PSDB, ruiu. Geraldo Alckmin, PSDB, sai das eleições de 2018 de forma vexatória. O PT, buscando sobrevida, e confuso entre defender sua principal liderança, Lula (encarcerado meses antes das eleições de 2018), e buscar apresentar um projeto alternativo, não foi capaz de construir uma candidatura capaz de barrar o avanço desenfreado de crescimento de um candidato icônico, despreparado e que baseava sua candidatura entre o diálogo chulo com o senso comum e a defesa de um projeto ultraliberal e conservador: Jair Bolsonaro. Esse, conseguiu, para além da campanha irregular com fake news em redes sociais e entrevistas exclusivas em redes nacionais sem autorização da justiça eleitoral, dialogar com o sentimento anti regime do povo brasileiro e se apresentou como a solução da crise econômica e social que vive o país, contra o PT, a esquerda e “para mudar tudo que esta aí”. Contou com a confusão popular que escolheu um projeto que já se apresentava anti povo, mas, ao mesmo tempo, não havia qualquer candidatura que inspirasse, no povo, esperanças de mudança do quadro social. Assim, Bolsonaro se elege, contando com uma parte da elite econômica e uma base social formada por retrógrados, conservadores e militares, mas, fundamentalmente, contando e atuando com a confusão política que impera no país. Assim, logo que assume, começa uma agenda contra a “esquerda” e contra o pensamento crítico, parte de uma jornada de ofensiva da direita conservadora em escala mundial. O ataque as Universidades, materializado no corte de verbas de 30% da educação superior e em diversos pronunciamentos atacando a Universidade, estudantes, professores(as) e a ciência, gerou uma grande reação popular, uma resposta que surge não apenas a partir dos cortes, mas é fruto de um acúmulo de lutas ocorridas no último período que foram capazes de, se não mudar o resultado eleitoral, desgastar e deslegitimar as políticas que, hoje, Bolsonaro apresenta. Refiro-me especialmente a luta das mulheres e do movimento feminista, que tem assumido protagonismo fundamental para o desenvolvimento da luta democrática. Em suma, maio de 2019 surge de uma situação muito mais contraditória, com eixo político evidente – a defesa da educação – e com direção política mais consolidada: estudantes e sindicatos ligados a educação.

Diferente de maio de 2019, junho de 2013 se desenvolveu não como uma pauta reativa em resposta a alguma medida impopular. Foi uma combinação de fatores complexos. Enquanto o Brasil se ocupava com a copa do mundo e megas construções, base de um grande esquema de corrupção descoberta mais tarde envolvendo grande empreiteiras, alijava ainda mais o povo pobre e oprimido. Vimos pessoas sendo expulsas de suas residências para beneficiar construções, vimos os indígenas ocupando Brasília e sendo massacrados pela repressão, vimos o governo Dilma ordenar uma intervenção militar nas favelas do RJ, vimos Ronaldo, o fenômeno, declarando que “não se faz Copa do mundo com hospitais”, vimos os serviços públicos básicos se deteriorando cada vez mais, vimos a crise econômica, que segundo Lula era apenas uma marolinha, se alastrar pelo país, vimos a Presidenta Dilma gestar uma lei anti terror, vimos, vimos, vimos. Porém, é inegável que as mobilizações de junho de 2013 não tinham como eixo a derrubada do governo Dilma, tanto o é que, em 2014, o povo brasileiro novamente da um voto de confiança ao projeto petista e reelege Dilma para um segundo mandato. Ou seja, o desenvolvimento de junho se tipificou não como antigoverno, mas sim como antiregime. Os fanáticos não entenderam, e trataram de rotular junho como “uma ofensiva da direita”, isolando as pautas apresentadas e buscando uma narrativa não condizente com as ruas. As narrativas, sempre elas, recortam a realidade e convencem fanáticos, mas são incapazes de alterar o estado das coisas e, como resultado, foi o passo inicial para germinar, então, as sementes da direita que, ao invés de se esconder, tratou de ocupar as ruas com suas pautas e, diante da negativa da “esquerda”, foram capazes de dialogar e apresentar um projeto, concretizando no surgimento de aberrações políticas, como o MBL e o Vem Pra Rua. Inicialmente não levaram, exceto em algumas cidades onde as mobilizações nitidamente tiveram tom mais à direita, mas anos mais tarde contaram com o imobilismo da velha esquerda para ocupar as ruas para, ai sim, exigir a saída da Presidenta Dilma. Logo ela que, inicialmente, entendeu perfeitamente as mobilizações de junho e tratou de buscar medidas democráticas que dialogassem com o sentimento do povo. Aqui volto ao que tratei no final do segundo parágrafo, Dilma foi capaz de tentar dialogar com junho, mas recuou apenas um dia depois. Certamente, temendo especialmente a ideia de um plebiscito popular da reforma política, sugerida por Dilma, as raposas da política brasileira, que formavam a base parlamentar de apoio ao PT, trataram de frear Dilma, criminalizar os movimentos e buscar uma saída institucional, sem dialogar com o sentimento popular que ocupavam as ruas. Dilma, então, ao contrário do que tinha anunciado, buscou a repressão como saída em detrimento do diálogo. Ou seja, Dilma preferiu os aliados retrógrados da direita clássica brasileira do que tratar com o povo brasileiro que ocupava as ruas. Era melhor negociar com José Sarney, Renan Calheiros, Silas Malafaia, Kátia Abreu, Marco Feliciano, Paulo Maluf, Sérgio Cabral. Enfim, os mandatários que sempre foram o câncer do país eram, na verdade, os principais aliados do PT e de Dilma. Buscando a salvação de um regime falido, Dilma e o PT foram protagonistas em germinar a extrema direita, inclusive dando espaço para os mesmos em seus governos, vale lembrar que o próprio Jair Bolsonaro foi base de apoio do PT, no governo Lula, e jogaram no colo da direita o legado de mobilização de rua, no qual trataram de, já em 2015, buscar as ruas para criar base social pelo impeachment de Dilma. O PT foi derrubado pelos próprios aliados que teve a chance de derrubar, mas preferiu salvar. O PSOL, apesar de todas as críticas e de ser oposição ao governo Dilma, foi ferrenho defensor de seu mandato, já os partidos da base do governo…

O desenvolvimento de maio de 2019 é inconcluso, uma etapa aberta. Tem potencial para ser maior e mais potente que junho de 2013 porque: a) as condições objetivas da crise econômica não cessaram. Ao contrário, cada vez se alastram mais levando o povo a miséria e a exaustão; b) O governo é frágil. Essa afirmação ainda não é concreta, mas, a base de sustentação não tem organicidade e já rachou. É nítida a divisão da base de apoio de governo entre militares, ultraliberais, olavistas, família Bolsonaro. Para além disso, Bolsonaro é incapaz de articulação política. Mesmo na reforma da previdência, pauta que une toda elite brasileira, o governo não consegue desenvolver a ampla maioria por diversos fatores, e o fato de ser inábil na condução do processo é um deles, afastando, por exemplo, o chamado “centrão” como base de apoio da reforma de Bolsonaro. A dificuldade em aprovar a reforma tão cara aos banqueiros e agiotas do sistema financeiro, aliado ao fato de que Bolsonaro não terá condições de resolver os graves problemas que assolam o país, podem tornar o governo descartável. O desemprego atual é de 13 milhões (67% de negros e negras), 6,5 milhões de subocupados (pessoas que trabalham menos de 40h, mas gostariam de trabalhar mais) e mais 5 milhões de desalentados (pessoas que desistiram de procurar emprego). Soma-se a tudo isso que o governo não tem nenhum projeto para saúde, educação, combate a violência, combate ao desemprego, nada disso. A agenda do governo é expressamente de retirada de direitos e aprofundamento da espoliação social. Por isso, mesmo que não tenha completado meio ano de gestão, acredito na fragilidade do governo, que ainda não se expressou materialmente, mas as mobilizações do dia 15, a que ocorrerá dia 30 e a greve geral de 14 de junho podem apresentar uma nova correlação de forças, colocando o governo na defensiva. A ofensiva do governo, em convocar mobilização de apoio no dia 26, também precisa entrar no mapa, a ver sua capacidade de mobilização. A única saída para o governo parece mesmo seguir em ritmo de campanha eleitoral e atacar o próprio regime, o que pode ser bastante perigoso se conseguir apoio social, visto que pode, aí sim, gestar as bases de um governo mais autoritário e golpista. c) As mobilizações de maio tem eixo e direção evidente. O ataque a educação organiza estudantes e entidades sindicais da educação na linha de frente da resistência e, ao mesmo tempo, a classe trabalhadora organizada prepara resposta à grave crise que enfrenta, convocando nova greve geral. Ou seja, as ruas começam a expressar a indignação popular, que tende a se aprofundar. d) o governo começa a demonstrar seu caráter corrupto. Essa definição é importante porque Bolsonaro se elegeu trabalhando com a pauta da corrupção. Denunciava a corrupção governamental, especialmente na Petrobrás, e conquistou apoio popular também em cima dessa pauta e, em menos de seis meses, sua família já demonstra a face corrupta do governo. Se as investigações se aprofundarem, se atingirem condições objetivas de julgamento por corrupção de Flávio Bolsonaro, haverá – além da crise econômica e social e das mobilizações de rua contra o governo – um elemento jurídico de desgaste do governo.

Portanto, e finalmente, ainda que junho de 2013 tenha sido, até então, mais potente em mobilização social do que maio de 2019, as condições atuais de desenvolvimento e aprofundamento de uma oposição organizada é maior agora. Junho tinha pautas pulverizadas, maio tem eixo. Junho não tinha direção consolidada, maio têm estudantes e entidades da educação como linha de frente. Junho era ofensivo, maio é reativo, entretanto, e dialeticamente, pode e tem condições de saltar para uma situação ofensiva E, fundamentalmente, Junho e Maio têm algo em comum: a expressão das contradições de classe, a explosão popular que emerge reagindo aos ataques, a fúria de oprimidos e oprimidas que, indignados, ocupam as ruas expressando suas revoltas. Junho de 2013 ainda não findou, e maio de 2019 pode ser o fio de continuidade, a fase qualitativamente superior a junho de 2013, seis anos mais tarde.

Assim, a tarefa de todos e todas nós é fortalecer o processo aberto. Buscar massificar e generalizar ainda mais a indignação popular, em cada local de trabalho, estudo ou lazer. É combinar a luta dos trabalhadores e trabalhadoras com a luta da juventude. É unificar sem hegemonizar. É, ao mesmo tempo que empareda o governo, construir e alicerçar formas democráticas de organização. Desta forma, é possível, sim, construir um novo horizonte.

O dobre fúnebre do Segundo Império já soou em Paris. O império terminará como começou, por uma paródia. Mas não nos esqueçamos de que foram os governos e as classes dominantes da Europa que permitiram a Luís Bonaparte encenar por dezoito anos a farsa do império restaurado.” Marx, Guerra Civil na França.