Por Gilson Moura Henrique Júnior

Há um consenso se formando que nos coloca na posição de afirmar que o mundo de hoje já foi afetado de forma definitiva pela pandemia do COVID-19 e que um outro mundo já está em formação.

Embora eu jamais seja tão otimista a ponto de achar que eventos como os atuais sejam definitivos e permitam uma única interpretação possível, eu costumo acreditar em formações de padrões de pensamento quando concordam entre si menestréis que tocam ritmos diferentes no universo das análises.

Para horror do Fukuyama, a história não só não terminou com a queda do muro de Berlim, como também resolveu se repetir como uma farsa macabra nos brindando com a junção, praticamente nos mesmos anos 20 apenas um século depois, da crise econômica com crise sanitária que atingiu os anos 1920 e levou aos anos 1930 a conviverem com um mundo brutal em formação.

Os anos 20 do século XXI também antecipou a ascensão da extrema direita, que hoje faz trottoir com o nazi-fascismo, ressignificando-o, e pôs tudo num mesmo prato, em um caldeirão em que a Revolução Russa seria apenas uma pequena parte de um processo histórico muito mais complexo que os idos dos anos 20 do século XX.

Esse combo da desgraça tende a nos impor também a percepção de que a frase de Marx de que a história se repete como farsa não seja lida como ela jamais quis ser compreendida e sim como ela foi escrita: que a profundamente complexa ação das sociedades humanas através dos tempos se repetia como uma imitação dela do que ocorreu antes, mas sim como uma percepção de que nós, sociedade fazemos, ou grupos dentre elas,  de processos históricos anteriores, imitando-os em busca de um fim idêntico que nunca virá.

A atual aparente repetição da História, essa suposta farsa, na verdade, é um resultado de processos históricos parecidos e acelerados pela expansão brutal e predatória do capital e se repetem porque assim como nos anos 1920 do século XX, temos hoje uma ampla desregulamentação do Estado em nível mundial, o que faz com que setores do poder e da população atuem de forma parecida com a que seus bisavós tiveram a desinteligência de fazer no século anterior.

Pandemias eram esperadas desde há muito tempo atrás, pelo menos cinco anos se dizia que a expansão do capital iria nos expor a novos vírus e novas pandemias. E não só por nós comunistas e socialistas, mas pelo Obama, que de socialista não tem nada.

A experiência com pandemias anteriores como a Gripe Espanhola eram parte da análise que nos dizia que a H1N1 não seria nem a primeira nem a mais mortal pandemia do século XXI. Havia também o medo que o Ebola, fruto da expansão da fronteira agrícola no Congo e sua parte do continente Africano, fosse essa pandemia, e outras pestes nos trouxesse o que pragas anteriores fizeram com o mundo.

Da mesma forma a desregulamentação do Estado de bem estar social, junto com a burocratização das esquerdas, sua adesão ao austericídio mundo afora e crise econômicas provocadas por políticas que focam na sustentação de um capitalismo fortemente financista, como nos idos de 1920, formaram um caldo perfeito pro germe do fascismo reaparecer de roupa nova.

Assim como o saque aos cofres públicos feitos pela troika na União Europeia, pelas políticas neoliberais que se forçaram prioritárias nas Américas, com ênfase no fortalecimento delas pelos EUA, traria um momento em que seria preciso reorganizar o fluxo de financiamento das atividades econômicas mundo afora para evitar o crescimento do desemprego e da desigualdade.

Não, a História não se repetiu, práticas historicamente equivocadas se repetiram com mudanças visíveis, mas resultados parecidos,  tendo com ferramenta o método predatório do capital de gestão ambiental, ecológica e social, sem qualquer mediação social pela via do estado, formando novamente o caldo que fez explodir nos anos 1920 uma série de processos que deram em uma escalada de violência brutal que matou centenas de milhões de pessoas entre 1918 e 1945.

A crise econômica de 2008 nunca foi completamente superada; a crise sanitária e dos sistemas de saúde foram agravadas pelos desmontes dos sistemas públicos (No Brasil, Reino Unido e  França, por exemplo) e recusa em construí-los (especialmente nos EUA); A prática de ampliar os limites da expansão das fronteiras agrícolas e urbanas jamais foi interrompida, ampliando o acesso de microorganismos a novos hospedeiros e com eles o surgimento de novas doenças; As políticas de desmantelamento dos direitos sociais e trabalhistas para aumentar as margens de lucro, fortemente inspiradas nos poucos direitos existentes no estado Chinês, viraram uma receita global, ampliando o desmantelo e o desemprego ou baixo emprego; Os ataques à produção científica pelo negacionismo climático e histórico viraram prática global de entes políticos da extrema-direita, muitos deles chegando ao poder por capitanearam estas práticas e ganharam a força do subfinanciamento da produção científica e estruturação de um foco em uma ciência amestrada e “lucrativa”; Tudo isso formou o caldo cultural que nos capitaneia nesta crise sistêmica que não temos ideia de como terminará.

Mas e aí, o que fazer? Bem, primeiro precisamos nos organizar para disputar um futuro que já é factualmente percebido como em disputa pelo próprio mundo neoliberal, que hoje aceita o que antes era absurdo: a ideia de renda básica universal.

Essa ideia é o primeiro passo para um projeto político de reorganização social que contemple o fim das desigualdades. Depois é preciso pensar a questão da moradia, do transporte, da produção econômica,etc.

Precisamos em primeiro lugar entender que já há pressões para um novo Bretton-Woods (Acordos que foram feitos na conferência localizada na cidade estadunidense e que nortearam as relações econômicas e comerciais entre Estados Nacionais no pós Segunda Guerra Mundial) e que isso nos traz uma percepção que seu incitamento vem de forças de diferentes espectros ideológicos que entendem que a crise sistêmica não só veio para ficar como nos afetará na próxima década. 

Em vários lugares do mundo, no Brasil inclusive, se percebe uma movimentação de setores multi-ideológicos que tentam apontar para uma concertação que unirá liberais, centro e esquerda em um pacto de refundação das Repúblicas.

Há também um fortalecimento da defesa do serviço público na opinião pública e na percepção do povo, e isso é nítido quando até um anti-estatista como Boris Johnson faz um enorme aceno ao sistema de saúde britânico e o elogia dizendo que o fortalecerá ou Rodrigo Maia vai no mesmo caminho.

Outros efeitos podem ser percebidos a partir da ideia de que o isolamento social coletivo forçado trouxe benefícios ao meio ambiente, ou que a expansão desenfreada do capital é parte do problema da expansão de novos infectantes para novas pandemias.

Só que isso tudo são caminhos e tendências, e é preciso que se faça mais, é preciso propor saídas e essa é a tarefa da esquerda.

Aproveitar brechas é primordial para expandir nossa defesa da vida humana e dos direitos humanos e sociais e quiçá a brecha para nos permitir discutir a céu aberto a necessidade de uma revolução.

Crises sistêmicas não terminam em flores e abrem caminhos para a superação sistêmica. 

O caminho aberto pelo ressurgimento do keynesianismo muito nos interessa porque é fundamental entender que há uma necessidade de planejamento da economia para a busca do pleno emprego.

Por que não aproveitar esse planejamento e torná-lo democrático e com um viés ecossocialista, tentando inserir aqui a discussão sobre o impacto positivo da diversidade produtiva e da descentralização política, econômica-produtiva e decisória? 

Se há espaço para um Estado gestor da economia e dos direitos humanos e sociais, porque não fazê-lo menos centralizado e exposto a autoritarismo e mais aberto a uma rediscussão de seu papel em uma ideia de economia que entende que recursos não são infinitos?

A expansão do grau de vigilância estatal com geolocalização para fiscalizar isolamento social não pode servir para perceber como a lógica de moradia é desigual e faz com que a exigência de transporte público, a maioria com matriz energética fóssil, seja um problema que amplia o grau de concentração das pessoas dentro de ônibus e trens e com isso mais do que as emissões de carbono trazem danos na saúde mental de enormes contingentes populacionais?

Aproveitando o debate sobre mobilidade e moradia, não há no transporte a percepção da possibilidade de migração de matriz, esforço de ampliação de multi modais que ampliem o transporte livre de combustíveis fósseis, a descentralização da economia e também do deslocamento?

A própria ideia de um estado maior que traz o termo de maior autoritarismo não nos permite rediscutir nossa política institucional, desqualificada pela extrema-direita como podre e recebendo eco na insatisfação popular com seus representantes, como parte do problema e que exige não um poder maior na mão de poucos, mas todo o poder nas mãos de muitos, através de políticas que permitam a criação e expansão de conselhos, sem as brechas legais e construídas com barreiras de compreensão da língua e do estado? 

Parece um samba de uma nota só, mas a própria transformação na produção agrícola com o forte abalo que o agronegócio mundial terá e já está tendo não nos permite discutir nossa política fundiária e de produção de alimentos, ampliando a descentralização da posse de terras e com ela a de produção agrária, com ênfase na agroecologia e na pecuária sustentável, reforço de investimento nas produções típicas de cada região e suporte à regiões com baixa produtividade agrícola?

São muitos os caminhos abertos e muitas as ideias que estes caminhos nos trazem para que discutamos em um mundo que virá depois do que morreu, mas nada nelas deve nos intimidade de pensar que cada uma delas é parte de um pensamento revolucionário, porque um novo sistema é possível no velho mundo que não assistiu inerte à expansão da mentalidade predatória que produz miséria e bilionários, fascistas negacionistas e genocidas em potencial.

É preciso ter menos timidez na defesa de nossas obrigatórias ideias contra um mundo distópico que nos ameaça com manutenção de austericídio junto com uma política de estado policial e vigilância digital. 

Nossa timidez não pode esquecer que para que um novo sistema seja possível é preciso superarmos o medo de derrubar o mundo antigo em todos os níveis.

Na disputa entre a utopia e a distopia, acreditar na utopia é parte fundamental para uma prática que dê respostas a uma crise sistêmica que praticamente nos exige uma prática revolucionária.

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