O Bolsonarismo contra o tempo

Por Gilson Moura Henrique Júnior

As tremendas ironias da História contemplam momentos únicos onde se tocam opostos.

O Tempo foi durante séculos mediado pela relação do homem com as estações e o nascer e pôr do sol. 

Divididos entre a hora de acordar e de dormir, na relação com o Tempo certo do plantio, da ordenha, da chegada ou não dos pássaros, o homem viveu organizando os dias e o trabalho a partir de demandas relativas ao cotidiano direto, com o calendário sendo o maior organizador externo à contemplação do Tempo como parte intrínseca da vida, assim como o frio ou a neve no inverno ou o calor do verão, a chegada do outono com suas folhas caindo e das flores na primavera.

Com as Grandes Navegações, a Revolução Comercial e a Revolução Industrial, as transformações sócio-culturais, políticas e econômicas que vieram com o avanço tecnológico, e com ele as transformações no pensamento artístico, científico e filosófico, o Tempo, como via de regra tudo a seu redor, se transformou e passou a ser mediado pela ação humana direta.

A exigência do crescimento do mundo fabril e de uma economia voltada para transformação organizada da natureza pelo controle da produção em linha, com o trabalho sendo remunerado a partir do cumprimento de jornadas definidas,não pelo sol nascendo e se pondo, mas pelo controle rigoroso do Tempo em que a mão de obra era utilizada dentro das fábricas.

O controle do Tempo pelo trabalho, ou vice versa, forneceu ao relógio um papel fundamental na enorme transformação cultural que fez dos séculos posteriores ao século XIX participantes dos períodos mais revolucionários de toda a história da humanidade. 

Ao retirar do homem o controle de sua vida através do Tempo determinado pela natureza, pelo passar dos dias, semanas e meses e não de horas, minutos e segundos, o sistema que nasce com esse controle do trabalho faz com que, pela primeira vez na história da humanidade, a civilização dominasse uma força cujas representações incluíam a face de devorador de seus próprios filhos.

Como o titã Prometeu tentou, a Modernidade e o Capitalismo domaram Cronos sem que fossem acorrentados a uma pedra enquanto seu fígado era devorado pro abutres.

Mas não apenas o Tempo foi domado, a Verdade também saltou de um domínio controlado por homens em posição de poder para uma disputa cotidiana e feroz pela posse dela, que a cada dia se transformava em uma dama menos distante e mais vizinha de nossos dramas e ódios.

Se antes a Verdade era apropriada por pastores, sacerdotes, reis, ministros, políticos, com o avanço do sistema capitalista, da complexidade e do tamanho dos Estados, das relações comerciais, com a maior necessidade de registro, comunicação e mediação entre a sociedade e o poder, ou mesmo entre a sociedade e suas diversas facções, a necessidade de ampliação de meios de comunicação levou à veloz presença de jornais e de outras formas culturais voltadas para a distribuição de acesso à Verdade, como o Rádio e depois a Televisão.

A Verdade deixava de ser aquela que flui através da voz dos líderes, mas passou a ter muitas janelas onde mostrava parte de seu inteiro corpo, numa disputa sobre quem melhor carregava suas mensagens, nas colunas, nos mosaicos dos jornais, e depois nas vozes e faces de locutores e âncoras.

Com a Verdade e o Tempo domados, com o Espaço controlado, o sistema Capitalista sequer piscou para tomar o mundo e  aparentemente vencer de forma violenta qualquer tipo de resistência, mudando completamente toda e qualquer forma de percepção cotidiana da realidade, transformando-se no grande mediador.

Usando todas as ferramentas tecnológicas possíveis, obrigando até inimigos que se organizavam com outra forma aparente de percepção do real a dobrar seus joelhos ante a complexa e onipresente percepção da vida, da economia , das relaçòes com a ciência, como a União Soviética, a adotar ela mesma a organização social e da produção centrada na hierarquia, na linha de montagem e na ruptura das relaçòes diretas e horizontais pela hiper centralidade que apenas o Capital ousou construir em torno de si, o Capitalismo tornou-se mais que um sistema onipresente, mas uma ideia quase divinizada e que não conteve-se e invadiu também o plano metafísico.

Ao atravessar o Rubicão que o separava do campo metafísico, sendo ele o campo mor da tecnologia e de seus domínios, o Capital aderiu a si uma espécie de ressignificação dos evangelhos sob o ponto de vista judaizante conservador, jogou fora os apelos do Nazareno por um Deus de Amor e trouxe de volta um Jeová furioso, pronto para maldições e dilúvios.

Até uma teologia própria, que vende uma prosperidade que faria aquele que expulsou os vendilhões do templo corar de fúria, o Capital construiu em torno de si.

E eis que aqui, qual um Prometeu que acorrenta a si próprio, o Capital fez contra si um inimigo feroz, pois foi a partir dela, e de uma ferocidade faminta em destruir e devorar seus inimigos, como se possuídos pela fome de Cronos, que nasceu um ramo do novo Deus que odeia o que simboliza sua aparentemente fria e racional face de transformador do velho através da Ciência.

É dessa costela que nascem o Bolsonarismo, o Trumpismo, o Tea Party e outros tipos de negacionismo fundamentalista necro-liberal que abundam na irracionalidade cotidiana e trazem consigo a Morte e a Peste como parceiros de um apocalipse que sepulta até a lógica necessária para que o Capital se alimenta de corpos, força de trabalho e vomite dinheiro para o que adoram sacrificar outros em holocausto para seus interesses diretos.

Aqui reside a ironia do título, pois além do Bolsonarismo correr contra o tempo de seu derretimento ele é um confrontador do Tempo, da Verdade, da Distância e de todo e qualquer tipo de mediação racional promovida pela Ciência.

O Bolsonarismo busca um conjunto de valores pré-capitalistas que se percebem pertinentes para os que gritam  “Deus Vult”, organiza sua relação com a Natureza traduzindo de forma literal preceitos bíblicos que afrontam qualquer ideia de equilíbrio ecológico e trata o que foge do controle de sua forma de ver a Verdade com o ódio que só pode sentir quem perdeu poder de púlpito para uma imprensa outrora nascente e hoje onipresente.

Por isso o eixo do Bolsonarismo é o avanço avassalador, cujo devir é o abismo, sustentado pela ideia de blindagem metafísica de seus atos, de seu papel, de sua existência.

Por construir em torno de si a ideia de que a Verdade é um monopólio que existe apenas para que eles a controlem, que o Tempo é o senhor de sua vontade e que a distância e a Natureza estão submetidas a eles, como escolhidos, os Bolsonaristas se entregam com a fúria fundamentalista ao ataque ao outro, mesmo que isso signifique também uma implosão que os conduza ao auto-sacrifício.

Tudo o que resiste a esse grito primevo, pré-moderno, é o Inimigo, satanizado, transformado em demônio de quadro de Bosch, em fantasma de Goya.

Nada mais natural, no sentido metafórico, que Comunistas e sua busca de racionalidade moderna, profundamente relacionada com as transformações promovidas pelo Capital, que planeja, organiza, busca uma superação do sistema através da observação objetiva do real, percebendo sua diversidade, avançando pela crítica e autocrítica, navegando na dialética materialista, pouco afeitos à metafísicas, sejam eleitos o inimigo principal.

O próprio Satã, ressignificado pela racionalidade lucrativa da Indústria Cultural, é menos odiado por quem propõe a aceitação da ciência como norte para uma transformação social objetiva e como mediadora da vida cotidiana.

Os ódios ao aborto, à aceitação da diversidade sexual, de gênero, racial e étnica, da existência de outras culturas, da existência de outros mundos possíveis, se encontram na encruzilhada do ódio ao Tempo e à Verdade como elementos que não são controláveis pela mãos de ferro ditatorial de quem louva um Deus Morto.

E é nesse mundo que hoje se confrontam não apenas os participantes diretos da Luta de Classes, mas também forças que se contradizem no interior do sistema que se achava uno. 

No interior do Capital se confrontam com quem percebe que um Necro-Capitalismo é o ápice do sistema produzir seu próprio coveiro, pois é retirando as mediações que a Luta de Classes assume sua faceta revolucionária.

E aí o lucro torna-se um fator que faz com que a Burguesia enfrente assustada seus filhos bastardos, corporificados em quem nega a vida em nome de uma economia incapaz de ser conduzida pro fantasmas.

Nesta crise sistêmica, o Bolsonarismo luta contra o Tempo, de forma ampla, e une, mesmo que não formalmente, quem ainda consegue entender que o tempo não é um Deus, mas um elemento cotidiano capaz de ser mensurado.

Abrem-se aqui brechas para novos caminhos, que entendam os limites da relação com a natureza, a ciência, a verdade e o tempo, e promovam sua ressignificação não buscando que eles se tornem menos divinos ou mais racionais e planificados, mas que se contemplem as necessidades de retirada do peso que o capital deu  a eles, tirando suas maiúsculas, seu papel supra-humano, e dando-lhes a face que faz com que não se divorciem tecnologia e vida com equilíbrio com o natural.

Porque o tempo está conosco até o pescoço.


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