Os Invisíveis

Na sociedade capitalista, onde a primazia é o empreendedorismo, o mercado financeiro, a globalização e a produtividade, existe uma categoria invisível: são os profissionais de saúde, divididos em diferentes funções e níveis de poder, inexpressivos por não produzirem valor, apenas saúde. Quem valoriza isso?

Mesmo diante de um país escravocrata, conquistamos a aprovação constitucional de um Sistema de Saúde Universal, que bate de frente com o sistema capitalista, e por isso até hoje não foi implantado na sua plenitude. Este sistema foi criado sobre três pilares: universalidade, equidade e integralidade, tornando todos os cidadãos com direitos iguais no que tange ao acesso à saúde física, mental e social, baseado em políticas que priorizam a prevenção na saúde em detrimento da indústria do adoecimento. Permitiu igualar a vida do oligarca ao ex-indigente, que não tinha sequer uma carteira profissional assinada, nivelou ainda o que paga um plano de saúde ao favelado que, na hora da emergência e do tratamento intensivo, dividem os mesmos leitos porque os planos de saúde cobram caro e muitas vezes limitam diagnósticos e despesas.

Ora, esse sistema não pode ser visto com bons olhos por um mundo em que vigora o neoliberalismo e a desigualdade social é crescente e indecente. Laboratórios, empresários, cientistas, universidades privadas, bancadas legislativas, poderes executivos e judiciais disputam verbas, favores e privilégios, engavetam e aprovam leis conforme suas necessidades, exercendo um inescrupuloso jogo de poder. A burocracia, a falta de verbas e incentivos, cabide de empregos e disputas políticas desleais corrompem e barram o controle social que deveria ser o efetivo auditor desse sistema.

Nesse ambiente atuam trabalhadores igualmente desiguais com diversos interesses, posturas e políticas salariais. Tendo sua grande maioria condições de trabalho eternamente deficitárias, dependente de políticas e repasses financeiros de ordem municipal, estadual e federal, ficam à mercê das políticas dos executivos de plantão, que ao longo dos anos vêm sucateando e precarizando todo o sistema de saúde e relações trabalhistas, mantendo os trabalhadores com salários vergonhosamente defasados, sem reajustes e muitas vezes atrasados.

É nesse contexto que surge uma pandemia, um novo vírus, que a ciência ainda não conseguiu conter nem prever sua dimensão; invisível, rápido, onde a única arma é o isolamento social. Parar tudo é a nova ordem.

– COMO ASSIM? Parar a produção, o comércio, as vendas?

– NÃO! gritam os poderosos, o mercado financeiro é mais importante!

Mas os corpos começam a se acumular, então os donos dos corpos se rendem e se obrigam a parar.  Mas a resistência é grande, afinal “não são tantos mortos assim!” Muitos não aceitam e teimam, e caem os corpos em leitos de hospitais lotados que precisam de respiradores, medicações, exames, investigações e pesquisas científicas, macas, UTIs, ambulâncias; líderes políticos mundiais e locais que tomem decisões, coordenadores, gestores, planejamento, contingenciamento, enfim e por fim, gente que cuida dessa gente.

Essa gente são os trabalhadores da saúde, uma categoria que trabalha em condições precárias desde sempre, mas mesmo assim, nesse momento deverá dar um salto de qualidade e ir para a linha de frente de uma guerra em que não se alistou. O inimigo é invisível, ágil, letal e desconhecido, onde faltam uniformes e armas, mas terão que atuar porque eles são “HERÓIS QUE NÃO FOGEM DA LUTA” e seus governantes assim decidiram.

Joseph-Achille Nbembe é um filósofo, teórico político, historiador, intelectual e professor universitário camaronês que pensou e elaborou conceitualmente a relação entre o poder e a morte. Esta relação é chamada Necropolitica: o uso do poder social e político para ditar como algumas pessoas devem viver ou morrer. Embora já estudada por outros autores, Nbembe colocou no centro da reflexão política as formas pelas quais o poder político de diferentes maneiras se apropria da morte como um objeto de gestão, nos limitando e decidindo como devemos viver, agir e quem deve morrer, e como lidar com a morte e os corpos. No Brasil, a necropolítica se associa ao racismo, machismo, dicotomia política, neoliberalismo e outros inúmeros mecanismos de morte. Vale a pena conferir o vídeo e o artigo nos links abaixo: 

https://www.youtube.com/watch?v=w5Ebmemh2Nk (Necropolítica: entenda o que é a política da morte – 17:36)

https://revistas.ufrj.br/index.php/ae/article/view/8993/7169 (NBEMBE, Joseph-Achille. Necropolítica. Revista Arte & Ensaios, n.32, 2016)

Aplaudidos e enfim vistos por uma sociedade que critica seus princípios universalistas, que ignora o fato de trabalharem de fraldas para poupar material não indo ao banheiro, rostos machucados por máscaras, quando as têm, sem roupa de proteção adequada, arriscando a vida por um salário defasado, atrasado e com proposta de redução para ajudar o governo a superar o déficit.

A ponta do sistema de saúde segue ameaçada por falta de EPIs básicos como luvas, máscaras e álcool em gel. Enquanto alguns municípios apontam uso obrigatório de máscaras, os comitês institucionais padronizam que não há necessidade a menos que tenham sintomas gripais, admitindo descaradamente que o cuidado deverá ser a partir da contaminação e não da prevenção. A população não sabe a diferença de intensivista e clínico, pessoal treinado e a eterna improvisação na assistência de enfermagem. A falta de diálogo, de informações, instalações adequadas, higienização e testagem dos profissionais, leva à contaminação desses, que se tornam vetores com grande potencial, pois estarão contaminando outros até apresentarem os sintomas.

E a sociedade se cala diante da falta de EPIs e respiradores, justificada por guerra de mercado ou falta de produção local, nenhuma medida do governo federal para produção industrial de insumos; a preocupação é o relaxamento do isolamento social para salvar a economia, essa sim precisa ser salva.

A prefeitura de Pelotas mantém 80% dos trabalhadores com salários básicos abaixo da metade do mínimo nacional, necessitando de vários complementos, incluindo direitos adquiridos, para integralizar um salário vergonhoso e sem reajuste no último ano. Além disso, mantém uma longa pauta de reivindicações sem negociação por anos, muitas delas ocasionadas por cortes das verbas de saúde, verbas que o município segue recebendo, porém, cortou o repasse aos servidores.

Trabalhadores de áreas essenciais como segurança e assistência social também permanecem trabalhando com falta de EPIs, e impossibilitados de manter o distanciamento social. Além disso, várias secretarias e chefias, muitas delas ocupadas por CCs, criaram dificuldades para que trabalhadores com comorbidades, portanto com risco de vida, exercessem o direito concedido por decreto, de se afastarem de seus locais de trabalho para salvarem suas vidas através do único recurso reconhecido mundialmente: o isolamento social.

A partir da constatação de que não há EPIs nem testagem para todos, os leitos de UTIs são insuficientes, Pelotas é uma cidade de referência regional e o número de contaminados ainda é crescente em todo o país antes mesmo da chegada do inverno. É inegável reconhecer que embora tenha apresentado alguma resistência, a prefeita Paula Mascarenhas exerce a necropolítica em defesa do Mercado, relaxando o isolamento social, escolhendo assim quem poderá morrer em Pelotas: idosos, imunodeprimidos, trabalhadores da saúde e demais áreas essenciais.

E aproveitando o ensejo da questão da desvalorização dos servidores municipais e da falta de EPIs, convém ressaltar também o racionamento das doses da vacina da gripe que está prejudicando a população e os servidores. Convém deixar claro que a vacina da gripe protege contra os vírus A do H1N1 e o H3N2 e contra o vírus B da influenza, mas não protege contra o coronavírus. No entanto, a pandemia está deixando a população com medo de tal forma que a demanda está bem maior que nos outros anos. No entanto, o ministério da saúde tem enviado doses racionadas de vacinas da gripe para a Secretaria de Saúde que consequentemente manda poucas doses para as UBSs que, quando as recebem, acabam em seguida. Esse racionamento além de prejudicar a população, prejudica também os servidores que ouvem desaforos dos usuários que os culpam pela falta das vacinas.

Não somos heróis, temos família para sustentar com um salário indigno, somos de carne e osso e também morremos.


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