A Revolução e as reformas nas ruas e nas redes

Por Gilson Moura Henrique Júnior

Não é todo dia que o debate sobre revolução, reforma e ação política em geral deixa de descambar para a tolice pura e simples do imediatismo essencialista de redes sociais e da vida louca do século XXI.

E descamba porque o cotidiano do excesso de informações deste século é o paraíso da pouca reflexão e da ação política enquanto estética, ou seja, visível, perceptível, mas não exatamente refletida, produzida pelo conjunto de experiências que formam consciências.

Reconhecer os limites dos espaços, os personagens que nele vivem e as necessidades de ação em cada um dos muitos espaços que nossa sociedade e sistema fragmentados nos fornecem é parte da práxis que os marxistas precisam ter para agir no dia a dia.

Recusar o mundo por suas limitações é um erro do tamanho da arrogância das redes, onde o desespero em ter respostas que lamentavelmente demoram para se realizarem, se juntam com as percepções definitivas com base em impressionismos absolutos para fornecer aquele imenso nada, um desesperador e deprimente nada, que é o fruto nada proibido dos dias de hoje.

Então perguntamos como faria Lênin: O que fazer? 

Não existe uma só resposta, mas, seguindo ainda as lições do velho amante de gatos, é fundamental estabelecer critérios para nossas ações cotidianas nos espaços onde existimos e compartilhamos experiências. Porque Marx, Lênin, Trotsky, Rosa, antes de mais nada, nos expuseram métodos de ação, reflexão, produção prática e teórica.

O primeiro espaço de reflexão, acho eu, é entender que não existe dicotomia entre revolução e reforma na práxis cotidiana, há a possibilidade de produzirmos ações reformistas enquanto defendemos a construção de processos revolucionários. Inclusive é bem bacana a gente entender que Revolução é algo que vai além do estrondo catártico da substituição de sistema. Revolução é o processo que leva ao estrondo tanto quanto o resultado dele.

Revolução é um processo que contempla um resultado que organiza a substituição de sistemas, catártica, quase escatológica, quase um fim de mundos para sua substituição por outro. A Revolução Francesa não ocorreu em 1789, ela ocorreu em um período de tempo que eclodiu em 1789 como parte explosiva de um fenômeno complexo. Da mesma forma a Revolução Russa não foi um fruto de 1917, ela tem, pelo menos, um início de processo até antes de 1905, e só terminou depois de 1921, depois da vitória final contra os Brancos e com a consolidação do Estado Soviético como um Estado Plurinacional, mas que continha a Revolução como limitada a um só país.

E mesmo este término é de difícil delimitação, pois os efeitos de 1917 duram até hoje, não só pelo legado, mas pelas idas e vindas da história do comunismo e do anticomunismo, pelas influências culturais, personagens, teorias, impacto cultural, político, social duradouro.

Então se a gente entende que Revolução é um processo, ela tem elementos de duração muito além dos períodos de tempo onde a escrita da história por vezes a delimitam, como agir de forma revolucionária pode ser contraponto de ações reformistas? E como agir de forma revolucionária em campos de ação que contemplam eleições, redes sociais afoitas, ruas com ascenso fascista,etc? 

Há  muitos caminhos possíveis. Primeiro é preciso entender que reformas produzem espaços de ações políticas que influenciam relações revolucionárias entre as pessoas. A conquista de direitos de pretos e pretas, LGBTs, mulheres, transgênero,indígenas e demais minorias políticas fizeram que do fim do século XX até os primeiros vinte anos do século XXI ocorressem revoluções comportamentais que transformaram definitivamente as relações sociais a ponto da extrema-direita basicamente se constituir numa reação ao avanço do peso político dos seres que a ala reacionária da sociedade considera párias.

Reformas do sistema com base em leis, em vitórias de movimentos, produziram uma percepção social de identidades múltiplas que garantem uma organização forte de resistência contra os direitos adquiridos, e isso faz com que pessoas de diferentes setores da sociedade se percebam como aliados no combate às forças reacionárias. Essa experiência de compartilhamento de elementos similares, de direitos parecidos, de dores e amores, produz o que Thompson diria ser um compartilhamento de experiências que produz a consciência de classe, que por sua vez é o motor de processos revolucionários.

Além disso, a revolução nos costumes mudou a forma como as pessoas se relacionam com política, cultura, sexo, drogas, rock n’ roll. A transformação do ver o mundo ajuda à transformação do agir sobre o mundo, construindo questionamentos sobre como o sistema se relaciona com as pessoas enquanto relações de produção.

E essas revoluções constroem canais de multiplicação de relações de forma tão ou mais forte que as redes de ódio que o bolsonarismo multiplica em seu semear de medos. 

É nas redes que as caras ecoam movimentos que se reconhecem no seriado da Globo, no filme, no moço nu, na moça nua, nos níveis de sinais que podem ser lidos pela Yalorixá, por mim, por você sem que deixemos de seguir, mais ou menos inteiros, mas íntegros na nossa identidade fragmentada típica dos dias de hoje.

O fundamental é viver o cotidiano com os olhos e corações atentos na prática diária, nos organizando em espaços coletivos de convivência, compartilhamento a construção coletiva de experiências e ações, sem que nos desprendermos das muitas redes virtuais e sociais de compartilhamento de informações.

O importante é atuarmos no chão e na nuvem, nos ligando a ambos sem deixar de entender as ações cabíveis e cada elemento. A nuvem não enxerga muitas vezes as dificuldades do chão, que por sua vez não se compartilha com a velocidade da nuvem.

A cultura é parte do processo dialético, sem que ela seja um elemento secundário da relação com a infraestrutura, mas parte de um movimento circular de alimentação entre a superestrutura e infraestrutura, ou seja, a gente pensa, ama, sonha, canta e dança na mesma intensidade e importância que produz a matéria das relações de produção.

E é fundamental que entendamos que o processo que liga reforma e revolução é o processo que integra as tantas vezes que precisamos construir pontes de transição entre elementos de sistemas diversos.

A reforma é um tijolo da Revolução, e a Revolução é fruto de um esforço cotidiano, que inclui transformações radicais no que somos e como agimos, para que ela seja um processo de transformação e não um evento escatológico marcado no dia do Apocalipse segundo São Joseph.

O tempo das ações precisa ser o tempo de nossas organizações coletivas, de nossas respostas coletivas aos problemas que se constituem cotidianamente.

Certas exigências de consciência de classe antes da ação esbarram na própria formatação estagnada de quem acha que 2013 não é parte de processos de transformação, porque o resultado foi contrário ao que o partido que estava no governo queria que fosse.

Interessante inclusive falarmos de junho de 2013 porque ele é prioritariamente um assunto que envolve como  processos complexos que podem ser parte de processos revolucionários são mal compreendidos pela própria esquerda.

Assim como os eventos que resultaram em Outubro de 1917, da formação da Duma em 1905 até a queda de Kerenski em Outubro de 1917, são desprezados em uma narrativa que fazem com que 1917 tenha sido uma espécie de movimento organizado em torno de uma artimanha dramatúrgica parecida com a Jornada do Herói, os eventos que envolvem 2013 são muitas vezes tornados mundos à parte numa guerra de narrativas que ignora processos complexos.

Da teoria de que 2013 foi organizado pela CIA até a compreensão de que antes das ações repressoras dos governos, inclusive os do PT, tudo estava bem no céu de brigadeiro da esquerda, há mais problemas na definição de um oceano como se fosse um córrego que outra coisa.

Óbvio que chega a ser engraçado o PT e outros setores da esquerda agirem para desqualificar junho de 2013 numa conjuntura como a de hoje, ignorando seu próprio papel quando foi aliado do PMDB (Hoje MDB) na repressão dos movimentos, constituídos  em sua maioria por autonomistas, anarquistas, PSOL, PCB e PSTU, enquanto abraçava PP, DEM e até o PSDB (Haddad ao lado de Alckmin em SP atacando os atos organizados pelo MPL não nos deixa mentir), para dizer que movimentos amplos e em disputa tinham como fonte a CIA.

O PSOL teve enorme participação com FIP, no Rio, ou com o Bloco de Lutas em PoA e com o MPL em SP, foi a CIA que incitou o partido? 

As bombas de Alckmin, Cabral, Tarso ou Agnello não tiveram mais efeito imoral tirando a esquerda da rua e sendo depois fofinhos com o avanço de integralistas e demais membros da extrema-direita que uma suposta organização da CIA, hein camaradas? 

O uso da Força Nacional sitiando ativistas contra a Copa na Praça Saens Peña no Rio de Janeiro, não tem nada a ver com o esvaziamento da ação da esquerda nas ruas enquanto a direita organizada pelo MBL (que só surgiu em 2014), ocupava os espaços com a complacência dos governadores, que não viam neles as ameaças que os partidos e movimentos de esquerda traziam consigo segundo seus olhos?

Claro que a esquerda organizada que fez de 2013 e 2014 anos de profunda explosão de lutas cometeu erros, o principal foi entender que os governos do PT seriam tolerantes e democráticos com qualquer ameaça à seu poder que não fosse comprável pelas relações perigosas do manuseio de fundos para as empreiteiras.

Outro enorme erro foi parte dela fazer coro com a direita e o PT na criminalização de Black Blocs,ou as explosões de sectarismo parte a parte, inclusive com a base do PT que discordava das relações perigosas de suas direções, mas é difícil não enxergar que o que ajudou mais o golpe contra o PT foi a aproximação com o PSC de Bolsonaro e Feliciano para sabotar a revisão da lei da anistia, dar poder a ambos na CDHM da Câmara, abraçar Cunha com o amor dos que não esperam traição e por Temer de vice.

Ok, a gente entende que em um cenário em que o PT é menos importante que antes, em que seus nomes tem dificuldade de serem hegemônicos e interessantes para uma suposta chapa de unidade (que o PT nunca quis), é fundamental acirrar ânimos pra fingir que a ausência de uma unidade eleitoral em 2020 é fruto de discordâncias de fundo.

Mas é óbvio que o ataque a 2013 é fruto mais de uma busca de retomada de hegemonia sobre narrativas que outra coisa em um cenário onde há vida fora das barras da saia do Lulismo em PoA, RJ, SP, etc. 

O apoio do PT no RJ é fundamental para Freixo ou seria uma âncora? A candidatura Manoela ganha com Maria do Rosário ou a mais competitiva seria Fernanda Melchiona e Manoela? 

O PT há tempos é aquele que traz consigo um enorme número de filiados, mas relações perigosas nas cidades (há quadros do partido que são linha auxiliar tucana em Pelotas) e todas as questões relacionadas com as manobras não exatamente éticas com fundos eleitorais que estão na praça desde 2006 mais ou menos. 

Há enorme rejeição em torno do PT, e exatamente porque o partido tem problemas sérios de reconhecer suas falhas cotidianas, para além das acusaçẽos de corrupção, e a insistência em reduzir o peso dos demais partidos e movimentos da esquerda na construção de transformações no país e no mundo.

A gente lamenta que o PT tenha optado conscientemente em esperar 2022 em vez de agir para combater Bolsonaro já e lutar pela sua queda antes que mais indígenas morram, que o SUS seja mais desmontado ou que as universidades acabem, mas o PSOL não tem o que esperar dos processos, discutíveis, da institucionalidade enquanto aguarda e luta para que sejam esclarecidos os fatos em torno do assassinato de Marielle.

Chega a ser um escárnio a ausência de urgência por parte do PT na luta pela derrota de Bolsonaro, sobre quem há no mínimo suspeitas de relações perigosas com os executores do assassinato de Marielle, enquanto suas lideranças preferem desqualificar todos os participantes das jornadas de junho de 2013 como se fossem marionetes da CIA e ataquem reputações como a da ativista Sininho que foi covardemente vinculada ao fascismo bolsonarista porque em 2013 foi contrária à prisão de um ativista que hoje, sete anos depois, participa de grupo integralista.

O ataque a Sininho traz consigo o requinte de crueldade do que o PT se tornou e como ele está distante até dos debates sobre reforma e Revolução inicialmente escritos aqui.

Porque ele contém o mesmo germe que fez com que ativistas ligados ao partido atacassem do MTST a Freixo como fascistas e auxiliares da direita, e retoma o assassinato de reputação que fez de um ascenso de lutas um refluxo que produziu o crescimento da direita.

O PT aqui age como Kerenski e os Mencheviques nos fluxos e refluxos em torno do processo revolucionário de 1905 a 1921 na Rússia, quando assumiram o poder se abraçaram na versão geleia geral mdbista do Czar e partiram para reprimir os revolucionários e seus movimentos, interrompendo a onda na porrada, esquecendo que os Brancos não foram nunca fãs de quem poderia ser chamado de vermelho.

Na ausência de compreensão revolucionária o Partido dos Trabalhadores opta por, de novo, combater a esquerda que faz oposição a Bolsonaro, que sair pelas ruas construindo a queda do amigo de milicianos.

Esse PT, que tem Rui Costa parecendo mais com Bolsonaro que com o ex-Lula, se junta a Jair na eleição do PSOL como inimigo prioritário, tendo o presidente usado sua horda para cotidianamente atacar Freixo, Sâmia, Jean, Marielle, David Miranda, e o ex-presidente agindo para que sua turba desqualifique o PSOL e suas lideranças os acusando de participar do golpe sobre a Dilma, dado pelo vice escolhido por Lula.

Para entender as Revoluções e processos em movimentos complexos, dentro de processos tão complexos quanto, é fundamental compreendermos as dinâmicas das ondas que as produzem, que fortalecem o compartilhamento de experiência e para isso existem crítica e autocrítica. 

Neste caso específico é fundamental entendermos os limites que determinadas alas da resistência democrática possuem em relação ao processo revolucionário e como suas açẽos traduzem uma busca de decadente hegemonia onde sequer enxergam os caminhos dos processos que envolvem as transformações.

Para avançarmos é fundamental sabermos com quem construir pontes e com quem delimitar a luta nos espaços onde elas cabem.

Quem tem medo das ruas age apenas nas redes, mas se limita na práxis, tem alcance limitado.

Em momentos onde há uma profunda crítica à estagnada institucionalidade, um partido ou movimento que não enxergue a vívida dinâmica das ações cotidianas das ruas, feitas de diversidade e diferença, está condenado à contra-revolucionária retórica do mofo.

É impossível surfar nas ondas revolucionárias aprisionado no medo.

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